quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011




O ESPELHO MÁGICO


Dizem que um espelho é tão somente um espelho. Será mesmo? Talvez um espelho possa guardar um tempo; guardar um amor; guardar o rancor. Ou guardar muita dor.
E quem sabe se não possa guardar o inesperado?

-- Deixa-me ver se a rabiola está grande, Maíra.
-- Está boa assim. Está subindo legal a minha pipa. Eu fui à pracinha de manhã e ela subiu
-- Você é uma boba. Não sabe nem fazer uma bem bonita. Precisa de seu irmão para tudo, até para seus brinquedos. Que coisa mais chata!
-- E você precisa de sua mãe para tudo. Não sabe nem andar sozinho pelas ruas da cidade.
-- Você é que pensa.
-- Penso só não. Eu vejo. Eu sei.
-- Sabe nada. Você não entende nada. Ela está sempre comigo porque é muito sozinha e precisa de minha companhia. Desde que papai morreu sou tudo que ela tem neste mundo. Devia ter mais sensibilidade e entender um pouco mais as pessoas, as coisas e o mundo que a cerca. -- e mudando repentinamente de assunto, -- Está bem, sabichona. E a lição de ontem você conseguiu fazer sozinha?
-- Ah! Claro que consegui. Claro!
-- Duvido. Duvido mesmo. Toquei neste assunto justamente por isso. Você nunca consegue e depois fica arranjando desculpas.
Com as duas mãos na cintura ela pergunta muito irritada.
-- Está me chamando de burra é?
-- Não estou chamando de burra não. É que você não presta atenção na aula... Acho que vive no mundo da lua.

A discussão dos dois iria longe se não tivesse chegado Henrique que sai arrastando a irmã pelo braço.
-- Não faça isso. Está doendo muito. Seu bruto, idiota.
-- Fica dando confiança a este besta. Vou contar tudo para o papai.
-- Se contar eu digo a ele que vi você fumando um dos cigarros dele.
Apertando ainda mais o braço da menina.
-- Não faria isso.
-- Faria. Não me conhece ainda?
-- Você é mesmo uma tonta. A pior coisa que existe neste mundo é ter uma irmã.
-- Tonto é você.
E batendo o pé:
-- Vou contar ao papai sim. Odeio você.
Irritado ele torce ainda mais o braço dela.
-- Não seja uma criança mimada e não me chame de tonto. Detesto quando faz isso. Sinto vontade de te massacrar.

Ela começa a chorar e de longe Paulo Augusto sente vontade de socorrê-la, mas desiste porque Henrique é mais velho e muito mais forte do que ele. Fica pensando que um dia crescerá e acertará as contas com aquele brutamonte.
Como pode judiar da irmãzinha daquele jeito? Ele até discute com ela, mas jamais teria coragem de dar uma apertãozinho que fosse naquela delicada amiga.
Delicada? Uma verdadeira oncinha. Isto sim é o que ela é. Mas bonita que só ela.
Fica pensando com seus botões que está bem servido de vizinhos. Uma menina caprichosa e um irmão horroroso. Sim, horroroso e sempre metido a besta.
Ficara tão feliz quando se mudaram para aquele prédio. A sindica contou à sua mãe que no apartamento ao lado tinha duas crianças quase de sua idade.

Da janela do apartamento a mãe o chama e ele corre para o elevador.
Quando entra Ana Lucia acaricia seus cabelos.
-- Brincou bastante com Maíra?
-- Ela é uma boboca.
-- Mas é sua amiga e você gosta dela.
-- Gostar eu gosto, mas ela é uma bobinha. Nem uma pipa sabe fazer. E aquele irmão dela é insuportável.
A mãe explica que o fato de não saber fazer um brinquedo não significa nada. A menina deve ter habilidade para outras coisas.
-- É uma sonhadora. Fica escrevendo versos e me diz que tem um espelho estranho. Acho que ela fantasia muito.
-- Como assim?
-- Ela fala que o espelho guarda segredos dela.
-- Nossa! Que interessante! E ela conta muitos a ele?
-- Não sei. Nunca lembrei de perguntar. Que segredos pode ter uma menina?
-- Como vou saber? Eu tinha os meus.
-- Não pode me contar quais eram os seus, mamãe?
-- Segredos são segredos, meu filho.

O menino fica pensando nas coisas que a amiga contaria ao espelho. Talvez dissesse que gostava dele.
Estaria sendo presunçoso?
Ele gostava dela de um jeito diferente. Como um homem. Gostava tanto que chegava a sentir uma pontada no peito quando o irmão batia nela. Mas era tão fracote que nem a defendia.
Se Henrique fosse de sua idade pelo menos, ou tivesse a sua constituição física.

-- Aonde vamos, mãe?
-- Visitar a tia Laura.
-- Ah, não, mãe! Não quero ir lá não. Ela é muito ranzinza.
Era a mais pura verdade. A tia solteirona de sua mãe era uma mulher azeda. O fato de não ter casado a fizera uma mulher amarga e vivia de mal com o mundo.
Infelizmente a mãe sempre conseguia convencê-lo a visitá-la.

A tia morava próximo dali e resolveram ir a pé. Seguiam pelas ruas conversando e volta e meia se abraçavam. Mãe e filho sempre foram muito unidos.
-- Por que tia Laura não se casou, mamãe?
-- Ela amou um rapaz na juventude.
Isto era novidade para ele. Toda vez que perguntava sua mãe desconversava e desta vez acabara contando uma intimidade da tia.
-- E por que não se casaram? Ele não gostava dela?
Ana Lucia conta a história toda e quando diz que o moço morrera num acidente automobilístico o garoto se surpreende.
-- Que pena! E pelo jeito eles eram apaixonados.
-- Sim, muito apaixonados.

Ao se aproximarem da casa de Laura mudam de assunto.
A tia os recebe com abraços e beijos e ele procura em seu olhar um pouco daquela história antiga. Saudades do namorado que morreu... lembranças...
Mas parece nada encontrar em sua expressão.
Ele se pergunta se ela teria esquecido o passado.
Paulo Augusto começa a imaginar se em suas noites solitárias tia Laura recorda os beijos do namorado que morrera; dos abraços e de tudo que viveram.
Como teria sido tudo? Como ela teria chorado por ele, se escabelado toda. Pensa que apesar da dor o amor é lindo. Sempre lindo como o que sente por Maíra.
Como gostaria que a menina sentisse um grande amor por ele como a tia sentira pelo falecido. Mas pede a Deus que o livre de um destino igual ao do rapaz que morrera antes do casamento.
Deseja casar com a amiguinha e ter muitos filhos. Uma casa linda, um carro bonito e todo o conforto do mundo.

Enquanto isso Maíra se observa no espelho. Fica admirando os grandes olhos verdes, o cabelo escorrido, a pele rosada. Manda um beijo para a imagem refletida e sai dançando pelo quarto.
Um dia crescerá e todos dizem que será uma linda jovem.
Paulo também é tão bonito e ela gosta muito dele. Talvez ele espere mais dela do que ela pode dar. Por enquanto pode oferecer sua amizade. Quando ficarem maiores quem sabe possam ser namorados. Beijar na boca e ficar abraçadinho.
Quem sabe!
No minuto seguinte ela retorna ao espelho fazendo uma pergunta desconcertante.
-- Espelho, eu me casarei com Paulo Augusto?
Um espelho comum refletiria apenas e tão somente a imagem de uma menina, mas o seu era um espelho diferente e dentro dele ela vê uma cena. Uma jovem com seus incríveis olhos verdes e um rapagão bonito se afastando dela. Pode perceber claramente que o que vê são eles dois no futuro. É Paulo que está partindo. Indo, indo...
E ela chorando, chorando muito.
Pra onde ele estaria indo?
Neste ponto o espelho resolve se calar. Nada mais revelará?

Chorar de antemão de que adiantaria? O espelho estaria lhe mostrando a verdade? Não seriam fantasias suas?
E quando o irmão lhe roubara o diário e lera na frente de todos? Ela não fora avisada antes? O espelho não tentara alertá-la que Henrique exporia a todos os seus segredos? E ela não dera importância.
Acontecera quando ela tinha nove anos e desde esta data passara a acreditar em tudo que o espelho mostrava. E agora ele mostrava aquela triste cena. O adeus de Paulo.

O toque do celular vem tirá-la de suas reflexões. É a amiga Luana convidando-a para brincar em sua casa.
A mãe consente e leva-a até a residência da amiguinha.
Tenta esquecer o que viu no espelho para não ser uma companhia desagradável para Luana. Tenta se convencer que são fantasias, mas sabe que mais tarde pensará de outra forma.

A amiga pergunta se brincou com Paulo Augusto e ela diz que ele é um bobinho. Que fica dizendo que ela é má aluna e que acha que ele não gosta nada dela.
-- Está enganada. Ele gosta muito de você.
-- Por que diz isso?
-- Ele demonstra gostar.
-- Acha mesmo?
-- Acho.
-- Mas ele diz que eu não presto atenção na aula; que não sei fazer lição; que nem presto para fazer uma pipa. E o pior, diz que sou uma sonhadora.
Rindo a amiga diz:
-- E não é?
E ficando repentinamente séria.
-- Ele pode até dizer tudo isso, mas que gosta, gosta.
-- Você gosta dele também.
-- Eu gosto dele? Quem falou isso?
-- Eu estou dizendo. Descobri agora.
-- Por que está dizendo isso?
-- É que todo dia você pergunta dele. E seus olhos brilham quando fala dele. Estão brilhando agora.
-- Imagine. Pergunto por perguntar. Não posso ser curiosa?
Maíra poderia encompridar aquele papo. Dizer que não era apenas curiosidade, mas resolve encerrar a conversa ali. Não levaria a nada mesmo.
Afinal de contas, viera até a casa da amiguinha para se divertir e não para discutir.

Luana também é muito bonita com seus lindos olhos negros, cabelos encaracolados e corpinho bem feito. Por certo também se transformará numa bela moça.
As duas brincam a tarde toda e esquecem completamente Paulo Augusto.

À noite na frente do espelho Maíra rodopia. Está corada, bonita.
Será que é uma convencida? O espelho diz que é linda e é mesmo. Luana também é.
E Paulo é bonito. Até o abominável Henrique é bonitão. O mundo todo é bonito. Ela está tão feliz que acha tudo lindo.

Resolve esquecer a cena do espelho. Fantasia? Ah! Para que perder tempo com esta indagação? Não é melhor o presente que o futuro? Para que se preocupar?
Paulo partindo...
Ela não deixaria nunca que ele se afastasse dela. Reconhece que está apaixonada por ele. Ainda é tão menina. Que pode entender de paixão? Diz a si mesma que entende sim. Apaixonou-se por ele no primeiro instante.

Durante o jantar já traz um sorriso nos lábios e parece ter se esquecido completamente do que viu no espelho.
O pai vem lhe falar:
-- Minha filha, no próximo mês você completará treze anos. Faremos uma festa na chácara da prima Luciana.
-- Por que lá?
-- Porque ela convidou e achamos que gostaria.
-- Não gosto, papai.
-- Por que não?
-- Os filhos dela são muito chatinhos. Não gosto deles.
A mãe chama sua atenção.
-- Que jeito feio de falar, menina!
-- E não é verdade?
O pai se cala, mas pensa que a filha está com a razão. Os meninos de sua irmã Luciana parecem mesmo dois diabinhos.

Ela resolve nem se preocupar com isso, pois os pais por certo encontrarão uma desculpa qualquer e a festa será no salão do prédio mesmo, como nos outros anos. Afinal a festa será para ela e os pais já sabem o que ela pensa dos priminhos impossíveis.

-- Mamãe, esta farofa está uma delícia.
-- Obrigada, querida. Eu vou lhe ensinar a prepará-la da próxima vez que fizer. Quer aprender?
-- Claro! Quero fazer pratos saborosos para meu maridinho.
O pai arregala os olhos para ela.
Estaria a sua princesinha já pensando nestas coisas? Ela brinca muito com o menino do apartamento ao lado. Mas daí até casar tem muito chão. A filha é uma criança.

Os anos passam para todos.
Diante do espelho não está mais a menina de treze anos, mas uma jovem de vinte.
Está completando vinte anos neste dia.
Olhando a imagem refletida não vê mais o brilho que existia em seus lindos olhos verdes.
Luana e Paulo Augusto estão de casamento marcado. Ela não se dera conta que a amiga o roubara até que o dia que ele mesmo viera lhe contar. Luana está esperando um bebê.
A amiga neste ano completa dezenove anos e Paulo vinte e dois.
O seu mundo mudara. O espelho não mentira. Ele partiria. Sim partiria, e partiria seu coração.
Não rodopia como quando era apenas uma menina. Não sorri para a imagem refletida. É tão bonita, mas tudo mudou. O menino do apartamento ao lado se transformou num belo jovem e logo estará se casando.
E ela só poderá estar naquele altar como madrinha.
Pergunta-se se eles a convidariam.
O espelho ainda lhe responde e ela olha a imagem que nitidamente lhe aparece.
Ela ao lado dos noivos acompanhada do irmão.
Sim, será a madrinha deles.
O espelho mágico sempre lhe contara a verdade. Mas alguns fatos ele omitira. Não tinha permissão para contar? Quem sabe?
Sonhadora!
Era assim que a viam. Sonhadora. O que sonharia agora que perdera o seu amado?
Melhor esquecer o passado.
Melhor cuidar da vida.

Que rosto sorridente era aquele que o espelho lhe mostrava?
Tinha consciência que o desconhecia e lhe parecia tão íntimo.
Via o primeiro beijo de amor que aconteceria entre eles.
Lá dentro do espelho outra história começava para ela.
Outros sonhos?

Dois anos depois eram Paulo Augusto e Luana os padrinhos. Ela estava se casando com Bruno. Feliz e sorridente percorria o longo corredor da igreja que ficava bem próxima ao prédio onde passara grande parte de sua vida. No altar um esbelto e elegante rapaz a aguardava.
Logo partiriam para bem longe. Bruno se instalaria definitivamente na Alemanha. Por sorte ela fizera aquele curso de alemão e lá se aprimoraria.
Carregaria consigo o espelho? Com certeza o levaria.

SONIA DELSIN

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