quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011




CALMA É A NOITE

Luciana jamais entenderia sua mãe. Jamais.
Por que as pessoas precisam complicar tudo? Não seria tão mais fácil se Paulina se afastasse daquele homem?
Paulina até pensara nisto, mas na hora H a coragem lhe faltara. E Luciana não conseguia entender porque o padrasto maltratava sua mãe e ela estava sempre correndo atrás dele.

O relógio estava atrasado dez minutos e dez minutos significavam muito para aquela jovem. Era sua primeira entrevista de emprego.
Paulina não podia ser uma mãe normal? Uma mãe amorosa e preocupada com a filha.
Em vez disso brigara com Nélio na noite anterior e nem se incomodara em acordá-la. Nem mesmo se levantara para preparar o desjejum para sua menina. Não que Lu não soubesse preparar, mas era mais gostoso quando a mãe lhe preparava. Sentia-se amada nestas horas.
Droga de relógio! Droga de vida!
A vida na periferia a cansava. A mãe estava cansando-a também. Nos últimos tempos dera para beber e vivia cheirando a álcool.
O mundo estava cansando-a, e ainda não completara dezoito anos.
Lembrava tão bem do pai. Ele tinha um sorriso que iluminava seu rosto inteiro.
Era caminhoneiro o Mario e sempre que voltava das viagens lhe trazia um presentinho. Um dia não voltou mais e ela demorou seis meses para entender que o pai tinha morrido. Tinha sete anos na época. Por que lhe esconderam sua morte?
Fora a prima Mariângela que lhe dissera:
-- Como você é bobinha! Vive olhando a rua e esperando que o caminhão do titio chegue. Não percebeu ainda que ele morreu? Ele morreu e nunca mais encostará o caminhão na frente da sua casa. Ele está morto.
Foi um choque tremendo.

Depois de alguns meses sua mãe conheceu Nélio num forró e aí sim sua vida mudou e para muito pior. Paulina parecia não enxergar mais nada. Era Deus no céu e Nélio na terra.
O padrasto maltratava-a constantemente e era alvo de piadas quando os amigos dele vinham visitá-los. Ela passara a odiar os domingos, pois era quando eles apareciam.

Ele oferecia aos amigos o que tinham e até o que não tinham. Era festeiro o Nélio e ela passara a odiar estas reuniões de comilanças e beberagens. Todos fumavam deixando o ambiente irrespirável. Ela que nunca colocara um cigarro na boca fumava por tabela e vivia com constantes problemas de alergia.
A mãe culpava o gato.

Arrumava-se correndo para ir à entrevista. Queria muito que desse certo, pois pretendia deixar a casa da mãe e morar sozinha, já que não suportava mais aquilo.
Fez uma maquilagem leve e discreta, escovou os longos cabelos e olhou-se no espelho. Achou que estava bem para uma entrevista.
Agora era torcer para que o ônibus não atrasasse.

Encontrou Paulo Henrique no ponto de ônibus e ele perguntou aonde ela ia tão cedo.
-- Estamos de férias na escola.
-- Vou ver se consigo me empregar.
-- Vixe Maria! Estou fora. Eu, hein!
-- Eu quero trabalhar.
-- Já sei. Quer é morar sozinha.
-- Claro que quero. Não aguento mais minha casa.
-- Como está o seu Nélio?
-- De mal a pior. Fuma igual uma chaminé e agora ele e mamãe estão bebendo muito.
-- Mas eles só bebem aos finais de semana.
-- Que nada! Estão bebendo todo dia. Não suporto mais aquilo.
-- Sua mãe gosta dele.
-- Acho que ela está é enfeitiçada.
-- Que feitiço duradouro! Já tem uns dez anos que os dois estão juntos.
Seu ônibus encostou e ela despediu-se do amigo beijando-o na face.

Quem fez a entrevista foi uma moça magra. Os enormes olhos pretos pareciam faróis em seu rosto fino.
Ela procurou manter-se calma e saiu-se bem.
-- Quando pode começar? Vi pelo seu curriculum que vai completar dezoito anos depois de amanhã.
-- Sim.
-- Comemore seu aniversário e vai providenciando os documentos necessários. Pode começar na segunda-feira.

Lu sentiu vontade de pular de alegria, mas educadamente despediu-se e passou no RH.

Quando contou à mãe que estava empregada esta quis saber qual seria seu salário.
-- Nossa! Vai trabalhar por esta mixaria?
-- Melhor que nada.
Com descaso Paulina comentou:
-- Realmente, melhor que nada.
Ela não diria que pretendia de mudar dali, mas tinha esperança de ser promovida, crescer na empresa. Mudar de vida enfim.

Na segunda começou a trabalhar e logo se inteirou de tudo. Em poucos meses tornou-se peça essencial no escritório. De uma dedicação extrema aprendia tudo com facilidade e procurava aperfeiçoar o inglês.
A promoção desejada chegou antes que ela pudesse imaginar e quando tentou o vestibular, para surpresa de todos, foi aprovada sem cursinho.
Começou a frequentar um curso à noite e sua vida foi mudando.

Neste ínterim conheceu Alberto e os dois começaram a namorar. Ele era de uma família abastada e não viam com bons olhos o namoro.
Afastou-se dele e depois de fazer contas e mais contas chegou a conclusão que dava para dividir um apartamentinho com uma amiga.
A mãe ficou chorando quando ela saiu de casa e Nélio apertou-a nos braços naquele seu jeito demagogo.
-- Eta, menina corajosa! Nós temos orgulho de você, viu?
Ele cheirava a cigarro e a álcool de uma forma que a deixava enjoada.
-- Se cuida, mamãe. E você, Nélio, crie juízo.
Com a fala dos alcoólatras e cambaleando ele respondeu:
-- Eu tenho muito juízo.

Ela se afastou com uma lágrima no olhar. Finalmente podia deixar aquele lugar. Tanto insistira em levar à mãe aos alcoólicos anônimos, mas Paulina não aceitara. O que ela podia fazer? Não queria levá-la obrigada. Mas a mãe tomaria a iniciativa?

Dois meses depois recebeu uma notícia que a mãe estava mal no hospital. Correu para lá e chegou tarde, pois Paulina já estava morta.

Saiu pela noite afora pensando em tantas coisas. A noite era tão calma... tão calma e ela tentava aceitar mais aquele baque.

SONIA DELSIN

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