quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011




BICO NA BICA
O bico na bica.
A bica no bico.
Cantor da floresta.
Ainda faz festa.
Tão pouco lhe resta.
A humanidade não sabe preservar.
O bico na bica.
A bica no bico.
Parece com seu olharzinho de pássaro me fitar.
Parece perguntar.
Até quando o planeta vai aguentar?
É tanta judiação.
Tanta destruição.
O homem devasta.
Para um abismo se arrasta.
Bico na bica...

SONIA DELSIN



MINHA ALMA MENINA
Minha alma leve é uma menina.
Ela corre pelos campos floridos.
Agita os vestidos.
Minha alma é de uma leveza.
Só enxerga a beleza.
Minha alma apesar de conhecer os horrores não fica nas dores.
Ela sabe se transportar.
Sabe buscar outro lugar.
E encontra paraísos por tantos cantos.
Ela sabe dos recantos.
Admiro esta minha alma calejada.
Esta alma de menina que vive com o mundo admirada.
Nunca que ela se transforma.
Nada a deforma.
É uma alma assim de menina... de criança... criança que esqueceu de crescer.
Ou preferiu no mundo bem viver.


SONIA DELSIN



COMO EU TE QUIS!


nos teus braços fui tão feliz
como eu te quis!
chegavam as manhãs e eu pensava
as noites vinham e me lembrava
dos teus beijos, teus toques...

Deus, como eu te quis!
tudo era tão bonito
eu voava e voltava ao infinito
tudo porque estava apaixonada
e me julgava amada

mas um dia me disseste
estou indo
quem parte será que leva um coração tão dolorido como o de quem fica?
fiquei chorando
olhando o sol que também partia
era final do dia
nem notei a primeira estrela que aparecia

fiquei lambendo minhas feridas e nem notava no jardim as margaridas
as dálias, as rosas
nem via o colibri que sempre estava por ali

o meu castelo tinha desabado
e para mim o mundo tinha acabado

na rede me deitava todas as tardes e chorava
ficava recordando o passado

o tempo tem o dom de suavizar as dores
de trazer outros amores

se te esqueci?
não se esquece um grande amor
acontece que o tempo suaviza a dor
e encontramos outras razões para viver

talvez eu tenha este amor adormecido dentro de meu ser
mentiria se dissesse que consegui te esquecer


SONIA DELSIN



HITLER AINDA VIVE EM MUITOS CORAÇÕES?


Talvez algum dia ele compreendesse. Talvez.
Talvez algum dia ela entendesse. Talvez.
Talvez a ciranda de pedra fosse apenas uma ilusão.

O dia nem bem nascia e ela se levantava. Olhos vermelhos, inchados, machucados.
Quem a ferira n’alma com tanta intensidade? Existe realmente a maldade?
Existe a falsidade.
É um fato, mas ela só compreenderia muito tarde. Muito tarde.

...


Voltemos uns anos no tempo. Muitos anos. Outro tempo, outra vida.
Alguns passos a levariam ao sótão e lá, olhando os velhos baús, ela se poria a sonhar. As botas, a roupa de caça...
Tudo vira fumaça?
Não vira não. Tudo é parte do coração.

...


O dela estava fatiado. Como se em um açougue estivesse, para ser vendido em fatias.
Amargos dias, amargos dias...

...


Lola cantarola uma música tão familiar. Uma música que nasceu quando ela fez aquela viagem para a lagoa.
A lagoa encantada, a pequena estrada...
As pedras; o tempo. Imóvel o tempo naquelas paragens. Dentro da viagem quantas viagens.
Um encontro com seu próprio eu ela tivera. Fora lá que aprendera que não se vive do ontem, que não se vive do que já passou.
Acordar e descobrir um corpo quente, diferente e tão vivo é fascinante e assustador. Ainda mais quando se sofre por amor.

Cantarola enquanto lava os pés numa bacia no quintal. Tudo tão diferente lá. O cheiro das coisas. Até os pensamentos.
Descobrira na lagoa a sua essência.
Diziam: paciência.
E ela não tivera? A vida inteira não tivera?
Até quando esconder os sonhos embaixo do tapete? Se bem que os seus estavam enterrados sob as folhas de outono.
Ó! A brisa acaricia sua face lembrando que está chegando o inverno.
Sabe de antemão que embaixo das cobertas se enrolará feito um feto.
Que fizera de sua vida? O quê?
Mas viver do ontem? Dos ontens? E o agora?

Aquele homem estivera em todas as suas vidas. Na verdade os dois estiveram. Um esmagara seu coração.
E o outro? O outro entristeceria todas as suas vidas. Por quê? Por que Hitler ainda mora nos corações dos homens?
Um lhe ferira profundamente. Ele lhe oferecera a lua e todas as estrelas e tudo despencara como se o apocalipse acontecesse assim com tamanha naturalidade. Falsidade, falsidade.
(A felicidade depende de fatores externos? Não está dentro de nossos corações?)

O pé limpo, a alma dolorida. Lembrança de outra vida.
Tantas vidas...

...

Subir correndo os degraus, chegar à janela e olhar o homem que se afastava enviando beijos. Cresceram juntos, amaram-se desde sempre.
O que é sempre? O que é? Por que ele partira se existia amor? Por que amor sempre rimando com dor?

Olhá-lo se afastando... indo, indo. Ficar olhando e rindo (neste tempo ela desconhecia o sofrer). Desconhecia o caminho, desconhecia o destino.
Destino? E quem pode afirmar? Por que não se pode mudar? Por quê?
“Se ela acreditava que tudo é possível, que tudo pode acontecer segundo o anseio do coração”.
(Mas ele não pensava assim) Era um descrente? Apenas um homem diferente.
E era justamente esta diferença que a fascinara. O jeito que ele dizia as coisas, seu jeito de pensar. Tão diferente dela. E parte do seu ser. Cresceram juntos numa vida. Como os ramos de uma mesma árvore. Cresceram juntos...
E se distanciaram...

E o outro? O outro a adorara e protegera. Adorara? Não. Não. Tudo mentira. Ou não?
Quem pode afirmar alguma coisa?
Hitler morando naquele coração? Ou não?
Não.

...

Ela tantas vezes sentira ímpetos de pisar na cabeça do dragão. Por que o amor e o ódio podem viver tão próximos? Podem ser confundidos. Ela não pisara na cabeça do dragão? Ela também não lhe sangrara o coração? Ou não? Tudo tão confuso e tão simples. Chumbo trocado. Ter amado e odiado? Que preço se paga por tudo nesta vida. O amor e o ódio lado a lado...

E o outro? No outro tudo é perdoável. É sagrado. Faz parte de todos os tempos. Está para sempre guardado.
Na sala dos espelhos se refletindo em cada espelhinho. O tempo, o tempo... os tempos voltando... as lembranças todas trazendo tudo de volta.

Ela enxuga uma lágrima e continua a cantarolar. Na música está impregnada a história de um amor impossível. De um amor que a eternidade carrega como um estigma.
Tatuado em seu coração aquele sorriso, o olhar, e tatuado o último olhar. E as palavras todas... todas.

Nunca mais a mesma? Nunca? Nunca? Nunca?

Sabe que pode começar a dançar, dançar... pode esquecer.
Pode a cigana incorporar e esquecer, esquecer... tudo, tudo.

A cigana rodopiando, cantarolando.
É ela embaixo de um céu mudo.
Tudo mudou.
Desenterrar aquela história? Quem pode afirmar que existiu de fato? Existiu. E ele partiu.
Está sempre partindo, sempre.

(E o outro também partiu)

Por que este amor por dois homens? E os dois só sabem machucá-la, machucá-la. Um intencionalmente e o outro... Ah! O outro não se deu conta do quanto a feriu. Ou deu? Hitler? Não. Que nada! Ele é pura mansuetude.
Ele é doce, meigo. Mas covarde? Não tem atitude?
E ela é capaz de amar alguém que por covardia lhe causa sofrimento?
Esquecer, esquecer...
(a felicidade independe de fatores externos, volta a lembrar-se)

Dançar e esquecer.

Uma canivetada no peito. Um reencontro, uma flechada. Uma vida estragada? Nada. Nada.

Dançar...
...

Tudo passa. Tudo nesta vida vai passar.
E no armário das lembranças se amontoar. Se amontoar para depois recordar.

As tranças. As tranças douradas girando no rodopio. O vento, os campos de trigo e o sorriso. O menino chegando... o menino.
O beijo inocente... a estradinha sob as nogueiras. O beijo, o beijo. O coração aos pulos.
Ele nunca a deixaria?
Deixaria.

O sorriso guardado nas fotografias do baú. O sorriso guardado no coração. O sorriso. O reencontro...

Ele a reconheceria? Não. Ele não a reconheceria. Sempre um cético.
Mas a amaria.

Existe amor aí?
Talvez seja sua forma de amar.
...

Esquecer estes dois homens e aí sim começar uma nova estrada. Esquecer vidas passadas, vida passada. Esquecer e recomeçar. Caminhar, caminhar, caminhar...

Outro homem? Um terceiro? Por quê?
Este seria a resposta? Não seria uma tabua de salvação? Outra paixão? Ah, coração! Ah, coração!

Regar as flores, estender a rede, olhar os pássaros, sentir o vento. Perder-se em meio aos pensamentos. Esperar a lua. O luar que tinge o jardim, que tinge o pátio. Que amortece os sentidos. Acalmar o coração, acalmar.

Recomeçar...
Recomeçar.

SONIA DELSIN



ENCONTRO COM DEUS

Naquele dia um encontro eu teria
Algo no meu ouvido dizia
Vais ter um encontro especial
Foi algo fenomenal
Diria que foi surreal

Eu estava de cabeça baixada
Achando a vida uma maçada
E ele surgiu do nada

Veio segurar minha mão
Tocou o meu coração

Seus olhos... eu nunca tinha visto algo igual
Tinha uma ternura neles que me fazia flutuar
Ele me convidava a voar
E fui...

Nas asas de todos os ventos deixei-me levar
Deus tinha tanto a me mostrar
Sobrevoamos jardins e parques arruinados
Sobrevoamos cidades e prados

Ele nada falava
Apenas me mostrava
E eu olhava

Eram infinitamente belas as flores quando ao seu lado eu admirava
Eram lindíssimas as cachoeiras
As planícies eram alvissareiras

Era um mundo mágico que eu via
E pensar que desde primórdios ele existia
Em mim
Em todos nós

Por que não enxergamos a beleza?
Por que não contemplamos a natureza?

Eu seguia-o com o coração tão leve
Ia tão solta
E nada temia

No Universo era como uma pena que flutuava
No imenso mar um peixe que nadava
Era uma com o infinito
E achava tudo tão bonito

Deus viera tão calado
Me mostrar o seu mundo encantado

Eu simples expectadora absorvia
O fio da vida, o segredo da minha essência
De repente a transparência
Era eu e eu
Deus e eu
Deus e Deus

Tudo estava explicado

SONIA DELSIN



RAINHA DO ESPELHO

era preciso esvaziar
todos os armários abarrotados de lembranças precisavam ser esvaziados
tantos sonhos guardados
a espera de quê?
do improvável?
do inevitável?

a corda ela roia
claro que doía

tantos anos e ela ali diante de si
diante de um espelho
o rosto dentro da moldura era de uma beleza
intocável

ilhada dentro daquele espelho ela procurava o esquecimento
tinha existido em seu viver um momento
único, ímpar

e como apagá-lo se até o espelho fazia questão de guardá-lo?

roer a corda até arrebentar?
chorar?
gritar?
calar?

até quando se manteria calada?
de repente começou a dar risada
a imagem no cristal se distorcia à medida que ela ria

via-se apagando
a imagem desvanecendo

o espelho nada mais trazia
nem o rosto pálido
nem o passado guardado
tudo estava acabado?
era o fim do reinado da rainha de um reino encantado?

SONIA DELSIN



MISTÉRIO

misterioso foi nosso encontro
íamos caminhando pela vida afora em estradas paralelas
e duas linhas paralelas não se encontram

fugimos da regra
do evidente
foi contundente
diferente

estávamos tão magoados
machucados
íamos desanimados

nosso encontro foi providenciado
pelas estrelas
pelo eterno
foi algo doce, terno

doloridos estávamos e começamos a rir
começamos a encontrar outra graça no existir

tu vinhas com teu jeito manso
eras meu remanso
eu ia a ti com minha impulsividade
falando em felicidade

nossas mentes se alastravam na eternidade
eu falava noutro tempo, outra vida, outra cidade
dizia que éramos almas gêmeas se reencontrando

e tu... tu que gostas do esotérico como eu
ouvias eu dizer que foste meu noutro tempo
tu me ouvias e sorrias
não em zombarias

pensavas na possibilidade de tudo ser verdade

amado meu, me disseste uma frase que marcou a minha vida
que fez eu me sentir para sempre querida
falaste que estamos os dois suspensos entre duas eternidades
pertencemos ao sonho e à realidade

sim, somos o mistério
um caso sério
num mundo irreal somos amantes
como sempre...
como antes

SONIA DELSIN



INFERNO E PARAÍSO

eu não sabia se devia chorar ou sorrir
quando falaste em partir
tu fizeste um inferno do meu existir

minhas noites eram açoites
chicotadas acabavam comigo

dizia a mim mesma
amei tanto
mereço este castigo?

esperava amanhecer
tentando o quadro reverter
mas aos poucos tudo eu perdia
até a capacidade de crer

nem os templos queria visitar
a natureza que tanto amava não conseguia me tocar
pensava
sou uma flor que está a murchar

presa num labirinto não via saída
acabava com minha vida

queria consertar e não via conserto
o mundo inteiro parecia ter defeito

me deprimia
sofria
me acabava na angústia que sentia

mas o céu de mim se compadeceu
um anjo apareceu
foi numa madrugada
de repente me senti amada, apreciada

ele me elevava quando comigo falava
outro mundo me mostrava
e as saídas para o labirinto
me indicava

dizia que eu era uma rosa presa num castelo
e que daria tudo para me conquistar
eu tinha apenas que uma senha liberar

tantos anos que isso aconteceu
lembro do inferno que vivi
e do paraíso que descobri

o anjo me tomou nos braços
se criamos laços?
os laços da benquerença
e fazem toda a diferença

nos mistérios que somos nos encontramos
nunca mais nos separamos
nossas matérias vivem distanciadas
mas nossas almas
ah! estas estão ligadas

SONIA DELSIN



CAMPO DE BATALHA

O que posso dizer de Ordália? O que se diz de uma mulher que ama e labuta tanto que no final do dia está exausta?
Ela era assim, uma batalhadora.
Cinco filhos, uma vida quase miserável; um marido imprestável (e a pobre o amava tanto).
Quando ele chegava, ela abria os braços e as pernas.
Abria-se para um homem que quase nada lhe entregava.
Ele vivia no cais. Entre as prostitutas e a vadiagem.
Vez ou outra fazia uma viagem.
E Ordália se desdobrava para cuidar dos moleques.
Estava sempre esperando seu amado.
-- O que tem para o jantar, mulher?
-- Tem arroz e mandioca frita.
-- Acompanhada de?
-- Homem de Deus! Está duro colocar comida na boca das crianças.
-- Também você pega filho todo ano. Parece até uma coelha.
-- Eu não faço os filhos sozinha. Você não quer usar camisinha. Já estou até vendo, uma hora pego uma doença. Pior se pegar uma Aids. Aí sim estou frita e coitados de nossos filhos. Que será feito deles?
-- Vira essa boca pra lá, Dalinha. Parece até que está chamando uma doença pra nós.
-- Eu não. Você é que arranja uma mulher em cada canto e não se cuida.
De repente ele a abraçava e ela esquecia que o marido era um mulherengo. Só queria seus carinhos. O caçula estava com um ano e meio. Precisava encontrar um jeito de não arrumar outros. Não se dava bem com a danada da pílula. Era tanto serviço que esquecia até de tomar.
-- Dalinha. Venha fazer amor comigo.
-- Você está fedendo como um bode. Por onde andou? Vá tomar um banho.
Ele pegou a toalha de banho e colocou sobre o pescoço dando uma piscada para a esposa que já pegava o ferro. Tinha tanta roupa para passar.
Do banheiro ele gritou:
-- Deixa esta roupa pra amanhã.
-- Tem muita.
-- Hoje eu quero você.
Ela fez de conta que nem o escutou e continuou a passar.
Enrolado na toalha ele veio tirando o ferro de sua mão.
-- Já não te falei pra parar com isso? Guarda esta porcaria.
-- Amanhã não vou ter tempo e as crianças estão quase sem roupa pra trocar.
-- Deixa de ser tonta, mulher. Um gato como esse está querendo você e fica querendo fazer serviço. Já passa das onze da noite.
Como falar não para ele? Logo estava na cama gemendo de prazer.
O caçula ia completar quatro anos e por sorte não vieram mais filhos. Parou no quinto.
Ajeitava-o um pouco. A irmã ficara de trazer um bolinho e uns docinhos. Ela comprou os refrigerantes.
De Guto nem sinal. Por onde andaria aquele pai desnaturado?
Mateus estava tão magro. O pobrezinho vivia com dor de garganta.
Odair e Junior eram mais fortes e as meninas também eram umas magricelas, mas tinham saúde.
-- Mãe, eu quero um doce.
-- Espera a festa.
-- Mas é meu aniversário.
Segurando-o pelo braço ela esbravejou:
-- Espera.
Havia tanta tristeza em seu olhar que ela não resistiu.
Gritar com o filho no dia do aniversário?
Era Guto que a deixava nervosa. Costumava sumir ultimamente e notava que ele não andava bem. Por onde andaria?
Dera de beber, além de fumar.
A irmã chegou com os dois filhos. Ela só tivera os gêmeos e tinha uma vida melhor que a dela.
-- Odila. Minha querida irmã.
-- Dalinha...
Abraçaram-se ternamente.
A vida é estranha. Brigavam tanto quando meninas e agora se adoravam.
-- Aquele peste não vai estar aqui para a festa do Mateuzinho?
-- Sabe Deus onde ele anda.
-- Você está tão magra, minha irmã.
-- Com a vida que levo.
-- Tem ido ao médico? Está com aspecto doentio.
-- Nem me fale isso que tenho esta penca de filhos pra cuidar.
Mais algumas crianças da vizinhança chegaram e a festa começou.
Tudo estava bem. A molecada feliz e nem comentaram a ausência de Guto. Ele sempre aprontava das suas.
No final da festa Ordália desmaiou.
Quando se recuperou Odila e o esposo quiseram levá-la ao médico, mas ela alegou que era o cansaço.
-- Cansaço faz alguém desmaiar? Perguntou Jaime aparentando preocupação.
-- Cunhada, eu vou levá-la pronto socorro. Tem um aqui perto, não tem?
-- Não tem necessidade. Não é nada não.
Ele insistiu e ela acabou aceitando.
O médico perguntou a Jaime se ela fazia exames periódicos.
-- Eu sou cunhado dela. Estou acompanhando-a.
-- Entendo.
-- Ela vai ficar hospitalizada.
-- Mas o que ela tem, doutor?
-- Ainda é cedo para falar. Vai fazer alguns exames.
A irmã estranhou quando Jaime voltou sozinho.
-- Sua irmã ficou internada.
-- Nossa! Mas o que ela tem? E agora, como faremos? Nem sabemos onde está o Guto.
-- Ele não serve pra nada mesmo.
-- É verdade. Tomara que não seja nada grave.
O médico chamou a família e como Guto nem tivesse dado sinal de vida, comunicou a Odila e Jaime o estado de sua paciente.
-- O meu colega que a atendeu no pronto socorro suspeitou que ela tinha alguma coisa grave e infelizmente foi comprovado. Sua irmã tem leucemia.
-- Leucemia? Câncer?
Jaime perguntou aflito:
-- E há alguma esperança para ela?
-- Um transplante de medula. Precisamos encontrar o doador.
-- Eu poderei ser a doadora. -- disse Odila prontamente.
-- Precisamos ver se existe compatibilidade.
Os meses subsequentes foram terríveis. Odila se desdobrando para ajudar a irmã e por fim descobriram que o filho caçula de Dalinha é que poderia ser o doador. Guto não aparecia e todos estavam desconfiados que estava morto, pois ele nunca ficava tanto tempo sem aparecer.
Na véspera da cirurgia da esposa foi encontrado um corpo e identificado como o de Guto. Não contaram nada a ela.
A recuperação foi difícil porque em sua convalescença ela acabou sabendo da morte do marido.
O tratamento se estendeu por um longo tempo com melhoras e pioras. O estado emocional da paciente interferindo muito, mas por fim ela acabou se fortalecendo. Isto aconteceu graças a um funcionário do hospital que sempre falava com ela. Ele se encantou com ela desde o começo. Era divorciado sem filhos e gostava de pegar Matheus no colo e ficar conversando com ele. Os dois se entendiam as mil maravilhas.
Com o passar do tempo Dalinha e Norberto começaram a namorar e ela acabou casando-se com ele, mudando totalmente sua vida e para muito melhor.
As crianças gostavam do padrasto e a vida se ajeitou da melhor forma para eles.

SONIA DELSIN



SEDE DE VINGANÇA


-- Mamãe! Mamãe!
-- O que houve, Carlo?
-- Você pegou a minha chuteira?
-- Vai levá-la?
-- Ora, lá é a terra do futebol. Não é você que diz que lá em todo canto há um campinho para se jogar? Quero jogar com meus primos.
Rafaella puxou a cabeça do garotinho de encontro ao coração e beijou seus cabelos negros.
-- Está certo, querido. Está certo, mas não podemos lotar demais as malas. É melhor comprarmos uma por lá. Não vá querer levar Turim inteira para o Brasil.
-- Se pudesse eu levava nossa casa, com tudo que tem aqui dentro, -- estendendo os olhos em direção ao corredor o menino lhe perguntou -- temos mesmo que ir, mãe?
Ela voltou a falar que era necessária a viagem.
-- Mas você me falou que é uma cidade pequeninha. Eu nasci aqui em Turim. Será que vou me acostumar a uma terra estranha? É um lugar pequeno. É interior de São Paulo, não é? Não podíamos morar em S. Paulo então?
-- Eu nasci em São Lourenço e gostaria que você fosse criado lá como eu fui.
-- É tão importante para você? Sente saudades de lá?
-- Sinto sim.
-- E meu pai? Nem virá se despedir de nós?
-- É lógico que virá. Não tem conversado com ele?
-- Ele não liga mais para mim. Agora só se importa com o seu bebê.
A mãe apertou-o mais fortemente de encontro a si, tentando assim protegê-lo das dores do mundo.
Após o nascimento do neném Marco não dava mais tanta atenção ao filho. Muito pouco ele aparecia e o garoto sentia sua falta.
Ela queria vê-lo empolgado com a viagem.
-- Amanhã estaremos num avião.
Ele acabou se entusiasmando. Gostava de viajar de avião. Se por um lado ele estava feliz em viajar, por outro estava triste em deixar sua terra natal e a casa onde moravam.
-- Mamãe, nós podíamos passar uns tempos lá e voltar, não?
-- Vamos ver, meu bem. Minha prima ofereceu para que eu fosse auxiliá-la na pousada. Eu estou mesmo desempregada e depois da morte da vovó ficamos tão sozinhos aqui na Itália. Mas se não nos adaptarmos, nós voltamos a Turim.
-- É uma promessa?
Era necessário que ela jurasse fazendo uma cruzinha nos lábios. De outra forma ele não acreditaria.
-- Vou ligar para meu pai e pedir que nos acompanhe ao aeroporto.
Ele correu ao telefone e Rafaella continuou organizando a bagagem. Desistiu de algumas blusas e echarpes que estavam prontinhas para serem colocadas em sua valise.
-- Não posso querer carregar tudo, ela pensou -- Estou como o Carlo, querendo levar minha “vida daqui” pra “lá”.
Pegou uma fotografia dos pais e uma lágrima caiu. A mãe morrera recentemente e ainda doía muito.
O pensamento voou para um tempo em que o pai vivia, quando ainda moravam em São Lourenço.
As lembranças traziam sofrimentos.
Pensou:
-- A verdade é que estou indo para me vingar, pai. Chegou a hora de destruir o Hugo. Ele há de pagar tudo que nos fez sofrer. Estou indo para acertar as contas com o passado. É por isso que estou voltando para o Brasil. O Carlo não sabe e nem quero que saiba. Eu lhe falei que estamos indo porque estou desempregada. Você sabe que eu me empregaria em dois tempos com o currículo que tenho, mas não. Chegou a hora da vingança. Hugo nem sabe o que lhe espera.
Jamais contaria ao pequeno filho quais eram suas intenções.
As lembranças que guardava do lugar eram boas. Uma infância feliz no sítio que moravam.
Muitos parentes residiam pelas redondezas. Na cidade só ficara a prima Giovanna e os filhos. A pobre enviuvara cedo, mas não deixava por nada o lugar que vivera tão feliz com o marido. E havia a pousada.
Guardou a fotografia dos pais e procurou enxugar as lágrimas rapidamente para que o filho não visse.
-- Papai vai nos acompanhar até o aeroporto. Nem sei como topou desgrudar daquela chorona.
-- Que é isso, filho? Não fale dessa forma, ela é sua irmãzinha.
-- Não sei que graça papai acha nela. Vive a chorar. A mãe dela fica balançando-a, balançando-a. Na última vez que estive lá fiquei irritado.
-- Não deve pensar assim de sua irmã.
-- Meio-irmã. Você também vai me dar meios-irmãos?
Acariciando aquela cabecinha adorada ela sorriu.
-- Quem conhece o amanhã, meu querido? Nada posso afirmar. Eu não pretendo me casar de novo, mas nunca sabemos...
-- Eu acho que você vai casar sim. Tem só 28 anos. Para falar a verdade até gostaria que tivesse um irmãozinho para me fazer companhia. Quem sabe lá em São Lourenço encontre alguém e se case de novo.
-- Não é por esta razão que estamos indo para lá.
-- Estou brincando.
Ele correu até a janela para ver um avião que passava.
-- Amanhã estarei dentro de um. E dos bem grandes. Não vejo a hora.
-- Vai adorar. Ainda bem que aprendeu a falar comigo o português e é tão fluente.
O filho se adaptaria ao Brasil? Ela gostava tanto de São Lourenço. Não fosse por Hugo talvez ainda estivessem todos morando lá. O pai morreu de tristeza. Aquele homem haveria de pagar tudo que lhes fizera sofrer.
Fechou o zíper da maleta e este beliscou ligeiramente o seu dedo porque o fez com muita raiva e brutalidade.
-- Preciso me controlar. Só com a cabeça no lugar é que vou conseguir realizar tudo que sempre desejei. Mamãe diria que a vingança é um prato que se come frio, mas preciso me vingar. Sinto que preciso fazer isso. Como estará aquele homem que roubou todos os bens de meus pais?

Giovanna adorou o priminho e os filhos dela então nem se fala. Não desgrudavam do italianinho.
-- Como você está bem, minha prima. Ainda mais bonita do que eu lembrava. Que tolo foi o seu marido em trocá-la por outra.
-- Não combinávamos.
-- Eu acredito que mais você aceitou se casar com Marco porque estava muito desolada com a morte de seu pai e com a ruína. Ele chegou em boa hora.
-- Eu me empolguei com aquele italiano e andava tão deprimida. Ele me oferecia uma vida nova. Mamãe aceitou se mudar conosco para Turim e acertamos tudo. Até que vivemos bem por lá. Quando nos separamos mamãe ficou morando comigo e com Carlo. Eu trabalhava e gostava da vida que tinha lá. Mas me conte, como está o Hugo? Ainda mora na fazenda?
-- Não escrevi contando? Hugo está morto. Será que esqueci de contar?
Morto? Por esta ela não esperava.
-- E a fazenda? Quem mora lá? A esposa dele?
-- Ela odeia aquilo tudo. Quem mora lá é o Mauro. Ele é que assumiu tudo. E é um amor de pessoa. Nem parece irmão daquele peste.

Dois meses depois ela estava sentada na varanda da casa da fazenda que fora de seus pais conversando com Mauro. Quem diria que seriam apresentados e se apaixonariam?
Tudo que lhe pertencera lhe voltava, mas de uma forma inesperada.
O italianinho teria irmãos brasileiros e todos correriam por aquelas terras

SONIA DELSIN



CALMA É A NOITE

Luciana jamais entenderia sua mãe. Jamais.
Por que as pessoas precisam complicar tudo? Não seria tão mais fácil se Paulina se afastasse daquele homem?
Paulina até pensara nisto, mas na hora H a coragem lhe faltara. E Luciana não conseguia entender porque o padrasto maltratava sua mãe e ela estava sempre correndo atrás dele.

O relógio estava atrasado dez minutos e dez minutos significavam muito para aquela jovem. Era sua primeira entrevista de emprego.
Paulina não podia ser uma mãe normal? Uma mãe amorosa e preocupada com a filha.
Em vez disso brigara com Nélio na noite anterior e nem se incomodara em acordá-la. Nem mesmo se levantara para preparar o desjejum para sua menina. Não que Lu não soubesse preparar, mas era mais gostoso quando a mãe lhe preparava. Sentia-se amada nestas horas.
Droga de relógio! Droga de vida!
A vida na periferia a cansava. A mãe estava cansando-a também. Nos últimos tempos dera para beber e vivia cheirando a álcool.
O mundo estava cansando-a, e ainda não completara dezoito anos.
Lembrava tão bem do pai. Ele tinha um sorriso que iluminava seu rosto inteiro.
Era caminhoneiro o Mario e sempre que voltava das viagens lhe trazia um presentinho. Um dia não voltou mais e ela demorou seis meses para entender que o pai tinha morrido. Tinha sete anos na época. Por que lhe esconderam sua morte?
Fora a prima Mariângela que lhe dissera:
-- Como você é bobinha! Vive olhando a rua e esperando que o caminhão do titio chegue. Não percebeu ainda que ele morreu? Ele morreu e nunca mais encostará o caminhão na frente da sua casa. Ele está morto.
Foi um choque tremendo.

Depois de alguns meses sua mãe conheceu Nélio num forró e aí sim sua vida mudou e para muito pior. Paulina parecia não enxergar mais nada. Era Deus no céu e Nélio na terra.
O padrasto maltratava-a constantemente e era alvo de piadas quando os amigos dele vinham visitá-los. Ela passara a odiar os domingos, pois era quando eles apareciam.

Ele oferecia aos amigos o que tinham e até o que não tinham. Era festeiro o Nélio e ela passara a odiar estas reuniões de comilanças e beberagens. Todos fumavam deixando o ambiente irrespirável. Ela que nunca colocara um cigarro na boca fumava por tabela e vivia com constantes problemas de alergia.
A mãe culpava o gato.

Arrumava-se correndo para ir à entrevista. Queria muito que desse certo, pois pretendia deixar a casa da mãe e morar sozinha, já que não suportava mais aquilo.
Fez uma maquilagem leve e discreta, escovou os longos cabelos e olhou-se no espelho. Achou que estava bem para uma entrevista.
Agora era torcer para que o ônibus não atrasasse.

Encontrou Paulo Henrique no ponto de ônibus e ele perguntou aonde ela ia tão cedo.
-- Estamos de férias na escola.
-- Vou ver se consigo me empregar.
-- Vixe Maria! Estou fora. Eu, hein!
-- Eu quero trabalhar.
-- Já sei. Quer é morar sozinha.
-- Claro que quero. Não aguento mais minha casa.
-- Como está o seu Nélio?
-- De mal a pior. Fuma igual uma chaminé e agora ele e mamãe estão bebendo muito.
-- Mas eles só bebem aos finais de semana.
-- Que nada! Estão bebendo todo dia. Não suporto mais aquilo.
-- Sua mãe gosta dele.
-- Acho que ela está é enfeitiçada.
-- Que feitiço duradouro! Já tem uns dez anos que os dois estão juntos.
Seu ônibus encostou e ela despediu-se do amigo beijando-o na face.

Quem fez a entrevista foi uma moça magra. Os enormes olhos pretos pareciam faróis em seu rosto fino.
Ela procurou manter-se calma e saiu-se bem.
-- Quando pode começar? Vi pelo seu curriculum que vai completar dezoito anos depois de amanhã.
-- Sim.
-- Comemore seu aniversário e vai providenciando os documentos necessários. Pode começar na segunda-feira.

Lu sentiu vontade de pular de alegria, mas educadamente despediu-se e passou no RH.

Quando contou à mãe que estava empregada esta quis saber qual seria seu salário.
-- Nossa! Vai trabalhar por esta mixaria?
-- Melhor que nada.
Com descaso Paulina comentou:
-- Realmente, melhor que nada.
Ela não diria que pretendia de mudar dali, mas tinha esperança de ser promovida, crescer na empresa. Mudar de vida enfim.

Na segunda começou a trabalhar e logo se inteirou de tudo. Em poucos meses tornou-se peça essencial no escritório. De uma dedicação extrema aprendia tudo com facilidade e procurava aperfeiçoar o inglês.
A promoção desejada chegou antes que ela pudesse imaginar e quando tentou o vestibular, para surpresa de todos, foi aprovada sem cursinho.
Começou a frequentar um curso à noite e sua vida foi mudando.

Neste ínterim conheceu Alberto e os dois começaram a namorar. Ele era de uma família abastada e não viam com bons olhos o namoro.
Afastou-se dele e depois de fazer contas e mais contas chegou a conclusão que dava para dividir um apartamentinho com uma amiga.
A mãe ficou chorando quando ela saiu de casa e Nélio apertou-a nos braços naquele seu jeito demagogo.
-- Eta, menina corajosa! Nós temos orgulho de você, viu?
Ele cheirava a cigarro e a álcool de uma forma que a deixava enjoada.
-- Se cuida, mamãe. E você, Nélio, crie juízo.
Com a fala dos alcoólatras e cambaleando ele respondeu:
-- Eu tenho muito juízo.

Ela se afastou com uma lágrima no olhar. Finalmente podia deixar aquele lugar. Tanto insistira em levar à mãe aos alcoólicos anônimos, mas Paulina não aceitara. O que ela podia fazer? Não queria levá-la obrigada. Mas a mãe tomaria a iniciativa?

Dois meses depois recebeu uma notícia que a mãe estava mal no hospital. Correu para lá e chegou tarde, pois Paulina já estava morta.

Saiu pela noite afora pensando em tantas coisas. A noite era tão calma... tão calma e ela tentava aceitar mais aquele baque.

SONIA DELSIN



O ESPELHO MÁGICO


Dizem que um espelho é tão somente um espelho. Será mesmo? Talvez um espelho possa guardar um tempo; guardar um amor; guardar o rancor. Ou guardar muita dor.
E quem sabe se não possa guardar o inesperado?

-- Deixa-me ver se a rabiola está grande, Maíra.
-- Está boa assim. Está subindo legal a minha pipa. Eu fui à pracinha de manhã e ela subiu
-- Você é uma boba. Não sabe nem fazer uma bem bonita. Precisa de seu irmão para tudo, até para seus brinquedos. Que coisa mais chata!
-- E você precisa de sua mãe para tudo. Não sabe nem andar sozinho pelas ruas da cidade.
-- Você é que pensa.
-- Penso só não. Eu vejo. Eu sei.
-- Sabe nada. Você não entende nada. Ela está sempre comigo porque é muito sozinha e precisa de minha companhia. Desde que papai morreu sou tudo que ela tem neste mundo. Devia ter mais sensibilidade e entender um pouco mais as pessoas, as coisas e o mundo que a cerca. -- e mudando repentinamente de assunto, -- Está bem, sabichona. E a lição de ontem você conseguiu fazer sozinha?
-- Ah! Claro que consegui. Claro!
-- Duvido. Duvido mesmo. Toquei neste assunto justamente por isso. Você nunca consegue e depois fica arranjando desculpas.
Com as duas mãos na cintura ela pergunta muito irritada.
-- Está me chamando de burra é?
-- Não estou chamando de burra não. É que você não presta atenção na aula... Acho que vive no mundo da lua.

A discussão dos dois iria longe se não tivesse chegado Henrique que sai arrastando a irmã pelo braço.
-- Não faça isso. Está doendo muito. Seu bruto, idiota.
-- Fica dando confiança a este besta. Vou contar tudo para o papai.
-- Se contar eu digo a ele que vi você fumando um dos cigarros dele.
Apertando ainda mais o braço da menina.
-- Não faria isso.
-- Faria. Não me conhece ainda?
-- Você é mesmo uma tonta. A pior coisa que existe neste mundo é ter uma irmã.
-- Tonto é você.
E batendo o pé:
-- Vou contar ao papai sim. Odeio você.
Irritado ele torce ainda mais o braço dela.
-- Não seja uma criança mimada e não me chame de tonto. Detesto quando faz isso. Sinto vontade de te massacrar.

Ela começa a chorar e de longe Paulo Augusto sente vontade de socorrê-la, mas desiste porque Henrique é mais velho e muito mais forte do que ele. Fica pensando que um dia crescerá e acertará as contas com aquele brutamonte.
Como pode judiar da irmãzinha daquele jeito? Ele até discute com ela, mas jamais teria coragem de dar uma apertãozinho que fosse naquela delicada amiga.
Delicada? Uma verdadeira oncinha. Isto sim é o que ela é. Mas bonita que só ela.
Fica pensando com seus botões que está bem servido de vizinhos. Uma menina caprichosa e um irmão horroroso. Sim, horroroso e sempre metido a besta.
Ficara tão feliz quando se mudaram para aquele prédio. A sindica contou à sua mãe que no apartamento ao lado tinha duas crianças quase de sua idade.

Da janela do apartamento a mãe o chama e ele corre para o elevador.
Quando entra Ana Lucia acaricia seus cabelos.
-- Brincou bastante com Maíra?
-- Ela é uma boboca.
-- Mas é sua amiga e você gosta dela.
-- Gostar eu gosto, mas ela é uma bobinha. Nem uma pipa sabe fazer. E aquele irmão dela é insuportável.
A mãe explica que o fato de não saber fazer um brinquedo não significa nada. A menina deve ter habilidade para outras coisas.
-- É uma sonhadora. Fica escrevendo versos e me diz que tem um espelho estranho. Acho que ela fantasia muito.
-- Como assim?
-- Ela fala que o espelho guarda segredos dela.
-- Nossa! Que interessante! E ela conta muitos a ele?
-- Não sei. Nunca lembrei de perguntar. Que segredos pode ter uma menina?
-- Como vou saber? Eu tinha os meus.
-- Não pode me contar quais eram os seus, mamãe?
-- Segredos são segredos, meu filho.

O menino fica pensando nas coisas que a amiga contaria ao espelho. Talvez dissesse que gostava dele.
Estaria sendo presunçoso?
Ele gostava dela de um jeito diferente. Como um homem. Gostava tanto que chegava a sentir uma pontada no peito quando o irmão batia nela. Mas era tão fracote que nem a defendia.
Se Henrique fosse de sua idade pelo menos, ou tivesse a sua constituição física.

-- Aonde vamos, mãe?
-- Visitar a tia Laura.
-- Ah, não, mãe! Não quero ir lá não. Ela é muito ranzinza.
Era a mais pura verdade. A tia solteirona de sua mãe era uma mulher azeda. O fato de não ter casado a fizera uma mulher amarga e vivia de mal com o mundo.
Infelizmente a mãe sempre conseguia convencê-lo a visitá-la.

A tia morava próximo dali e resolveram ir a pé. Seguiam pelas ruas conversando e volta e meia se abraçavam. Mãe e filho sempre foram muito unidos.
-- Por que tia Laura não se casou, mamãe?
-- Ela amou um rapaz na juventude.
Isto era novidade para ele. Toda vez que perguntava sua mãe desconversava e desta vez acabara contando uma intimidade da tia.
-- E por que não se casaram? Ele não gostava dela?
Ana Lucia conta a história toda e quando diz que o moço morrera num acidente automobilístico o garoto se surpreende.
-- Que pena! E pelo jeito eles eram apaixonados.
-- Sim, muito apaixonados.

Ao se aproximarem da casa de Laura mudam de assunto.
A tia os recebe com abraços e beijos e ele procura em seu olhar um pouco daquela história antiga. Saudades do namorado que morreu... lembranças...
Mas parece nada encontrar em sua expressão.
Ele se pergunta se ela teria esquecido o passado.
Paulo Augusto começa a imaginar se em suas noites solitárias tia Laura recorda os beijos do namorado que morrera; dos abraços e de tudo que viveram.
Como teria sido tudo? Como ela teria chorado por ele, se escabelado toda. Pensa que apesar da dor o amor é lindo. Sempre lindo como o que sente por Maíra.
Como gostaria que a menina sentisse um grande amor por ele como a tia sentira pelo falecido. Mas pede a Deus que o livre de um destino igual ao do rapaz que morrera antes do casamento.
Deseja casar com a amiguinha e ter muitos filhos. Uma casa linda, um carro bonito e todo o conforto do mundo.

Enquanto isso Maíra se observa no espelho. Fica admirando os grandes olhos verdes, o cabelo escorrido, a pele rosada. Manda um beijo para a imagem refletida e sai dançando pelo quarto.
Um dia crescerá e todos dizem que será uma linda jovem.
Paulo também é tão bonito e ela gosta muito dele. Talvez ele espere mais dela do que ela pode dar. Por enquanto pode oferecer sua amizade. Quando ficarem maiores quem sabe possam ser namorados. Beijar na boca e ficar abraçadinho.
Quem sabe!
No minuto seguinte ela retorna ao espelho fazendo uma pergunta desconcertante.
-- Espelho, eu me casarei com Paulo Augusto?
Um espelho comum refletiria apenas e tão somente a imagem de uma menina, mas o seu era um espelho diferente e dentro dele ela vê uma cena. Uma jovem com seus incríveis olhos verdes e um rapagão bonito se afastando dela. Pode perceber claramente que o que vê são eles dois no futuro. É Paulo que está partindo. Indo, indo...
E ela chorando, chorando muito.
Pra onde ele estaria indo?
Neste ponto o espelho resolve se calar. Nada mais revelará?

Chorar de antemão de que adiantaria? O espelho estaria lhe mostrando a verdade? Não seriam fantasias suas?
E quando o irmão lhe roubara o diário e lera na frente de todos? Ela não fora avisada antes? O espelho não tentara alertá-la que Henrique exporia a todos os seus segredos? E ela não dera importância.
Acontecera quando ela tinha nove anos e desde esta data passara a acreditar em tudo que o espelho mostrava. E agora ele mostrava aquela triste cena. O adeus de Paulo.

O toque do celular vem tirá-la de suas reflexões. É a amiga Luana convidando-a para brincar em sua casa.
A mãe consente e leva-a até a residência da amiguinha.
Tenta esquecer o que viu no espelho para não ser uma companhia desagradável para Luana. Tenta se convencer que são fantasias, mas sabe que mais tarde pensará de outra forma.

A amiga pergunta se brincou com Paulo Augusto e ela diz que ele é um bobinho. Que fica dizendo que ela é má aluna e que acha que ele não gosta nada dela.
-- Está enganada. Ele gosta muito de você.
-- Por que diz isso?
-- Ele demonstra gostar.
-- Acha mesmo?
-- Acho.
-- Mas ele diz que eu não presto atenção na aula; que não sei fazer lição; que nem presto para fazer uma pipa. E o pior, diz que sou uma sonhadora.
Rindo a amiga diz:
-- E não é?
E ficando repentinamente séria.
-- Ele pode até dizer tudo isso, mas que gosta, gosta.
-- Você gosta dele também.
-- Eu gosto dele? Quem falou isso?
-- Eu estou dizendo. Descobri agora.
-- Por que está dizendo isso?
-- É que todo dia você pergunta dele. E seus olhos brilham quando fala dele. Estão brilhando agora.
-- Imagine. Pergunto por perguntar. Não posso ser curiosa?
Maíra poderia encompridar aquele papo. Dizer que não era apenas curiosidade, mas resolve encerrar a conversa ali. Não levaria a nada mesmo.
Afinal de contas, viera até a casa da amiguinha para se divertir e não para discutir.

Luana também é muito bonita com seus lindos olhos negros, cabelos encaracolados e corpinho bem feito. Por certo também se transformará numa bela moça.
As duas brincam a tarde toda e esquecem completamente Paulo Augusto.

À noite na frente do espelho Maíra rodopia. Está corada, bonita.
Será que é uma convencida? O espelho diz que é linda e é mesmo. Luana também é.
E Paulo é bonito. Até o abominável Henrique é bonitão. O mundo todo é bonito. Ela está tão feliz que acha tudo lindo.

Resolve esquecer a cena do espelho. Fantasia? Ah! Para que perder tempo com esta indagação? Não é melhor o presente que o futuro? Para que se preocupar?
Paulo partindo...
Ela não deixaria nunca que ele se afastasse dela. Reconhece que está apaixonada por ele. Ainda é tão menina. Que pode entender de paixão? Diz a si mesma que entende sim. Apaixonou-se por ele no primeiro instante.

Durante o jantar já traz um sorriso nos lábios e parece ter se esquecido completamente do que viu no espelho.
O pai vem lhe falar:
-- Minha filha, no próximo mês você completará treze anos. Faremos uma festa na chácara da prima Luciana.
-- Por que lá?
-- Porque ela convidou e achamos que gostaria.
-- Não gosto, papai.
-- Por que não?
-- Os filhos dela são muito chatinhos. Não gosto deles.
A mãe chama sua atenção.
-- Que jeito feio de falar, menina!
-- E não é verdade?
O pai se cala, mas pensa que a filha está com a razão. Os meninos de sua irmã Luciana parecem mesmo dois diabinhos.

Ela resolve nem se preocupar com isso, pois os pais por certo encontrarão uma desculpa qualquer e a festa será no salão do prédio mesmo, como nos outros anos. Afinal a festa será para ela e os pais já sabem o que ela pensa dos priminhos impossíveis.

-- Mamãe, esta farofa está uma delícia.
-- Obrigada, querida. Eu vou lhe ensinar a prepará-la da próxima vez que fizer. Quer aprender?
-- Claro! Quero fazer pratos saborosos para meu maridinho.
O pai arregala os olhos para ela.
Estaria a sua princesinha já pensando nestas coisas? Ela brinca muito com o menino do apartamento ao lado. Mas daí até casar tem muito chão. A filha é uma criança.

Os anos passam para todos.
Diante do espelho não está mais a menina de treze anos, mas uma jovem de vinte.
Está completando vinte anos neste dia.
Olhando a imagem refletida não vê mais o brilho que existia em seus lindos olhos verdes.
Luana e Paulo Augusto estão de casamento marcado. Ela não se dera conta que a amiga o roubara até que o dia que ele mesmo viera lhe contar. Luana está esperando um bebê.
A amiga neste ano completa dezenove anos e Paulo vinte e dois.
O seu mundo mudara. O espelho não mentira. Ele partiria. Sim partiria, e partiria seu coração.
Não rodopia como quando era apenas uma menina. Não sorri para a imagem refletida. É tão bonita, mas tudo mudou. O menino do apartamento ao lado se transformou num belo jovem e logo estará se casando.
E ela só poderá estar naquele altar como madrinha.
Pergunta-se se eles a convidariam.
O espelho ainda lhe responde e ela olha a imagem que nitidamente lhe aparece.
Ela ao lado dos noivos acompanhada do irmão.
Sim, será a madrinha deles.
O espelho mágico sempre lhe contara a verdade. Mas alguns fatos ele omitira. Não tinha permissão para contar? Quem sabe?
Sonhadora!
Era assim que a viam. Sonhadora. O que sonharia agora que perdera o seu amado?
Melhor esquecer o passado.
Melhor cuidar da vida.

Que rosto sorridente era aquele que o espelho lhe mostrava?
Tinha consciência que o desconhecia e lhe parecia tão íntimo.
Via o primeiro beijo de amor que aconteceria entre eles.
Lá dentro do espelho outra história começava para ela.
Outros sonhos?

Dois anos depois eram Paulo Augusto e Luana os padrinhos. Ela estava se casando com Bruno. Feliz e sorridente percorria o longo corredor da igreja que ficava bem próxima ao prédio onde passara grande parte de sua vida. No altar um esbelto e elegante rapaz a aguardava.
Logo partiriam para bem longe. Bruno se instalaria definitivamente na Alemanha. Por sorte ela fizera aquele curso de alemão e lá se aprimoraria.
Carregaria consigo o espelho? Com certeza o levaria.

SONIA DELSIN

PORTAS ABERTAS





Conhecer novos mundos em alguns segundos... viajar, viajar.
Dispostos nas estantes. Organizados.
Aguardando que umas mãos os toquem, que uns olhos os busquem.
Os livros estão todos alinhados.
São mundos guardados.
Desde pequenina sempre pensei.
Cada escritor é um príncipe, um rei.
Tem um mundo a ser mostrado.
É o seu reinado.
E quem o descobre passa a fazer parte deste principado.

Como viajei, quantos mundos encontrei!
Me encantei, me encantei!
Quantas horas em uma biblioteca eu passei!
Adorava minhas viagens...
Uma hora estava em profundas minas, em cavernas encantadoras, amedrontadoras; no miolo da terra, noutra estava voando nas asas de uma pequena borboleta.
Ia com os colibris visitar os jardins, montava um cavalo alado.
Guerreava, vencia, perdia.
Sorria, sofria.
Visitava casebres e castelos, vielas e metrópoles, a terra, o mar, o ar...
Outras campinas.
Ia a lugares inusitados.
Mundos obscuros e mundos dourados...
Cemitérios abandonados, circos armados, palácios arruinados...

Fui captando um pouco de um livro, um pouco de outro, de outro...
Um dia me dei conta que conhecia muitos aspectos do mundo.
Que viajava em cada obra para o mais profundo.
Um dia me descobri fascinada por Cronin, por Neruda...
Não quero e nem devo citar nomes porque admiro tantos autores.
Com eles sofri e chorei todas as dores.
Também eu gosto de falar de amores.

A vida toda eu escrevi e li.
Nas bibliotecas um mundo de possibilidades descobri.
Encontra-se aprendizagem, viagem.
Livros são portas... portas abertas...
Para o descobrimento.
Para o conhecimento.

SONIA DELSIN