quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011




HITLER AINDA VIVE EM MUITOS CORAÇÕES?


Talvez algum dia ele compreendesse. Talvez.
Talvez algum dia ela entendesse. Talvez.
Talvez a ciranda de pedra fosse apenas uma ilusão.

O dia nem bem nascia e ela se levantava. Olhos vermelhos, inchados, machucados.
Quem a ferira n’alma com tanta intensidade? Existe realmente a maldade?
Existe a falsidade.
É um fato, mas ela só compreenderia muito tarde. Muito tarde.

...


Voltemos uns anos no tempo. Muitos anos. Outro tempo, outra vida.
Alguns passos a levariam ao sótão e lá, olhando os velhos baús, ela se poria a sonhar. As botas, a roupa de caça...
Tudo vira fumaça?
Não vira não. Tudo é parte do coração.

...


O dela estava fatiado. Como se em um açougue estivesse, para ser vendido em fatias.
Amargos dias, amargos dias...

...


Lola cantarola uma música tão familiar. Uma música que nasceu quando ela fez aquela viagem para a lagoa.
A lagoa encantada, a pequena estrada...
As pedras; o tempo. Imóvel o tempo naquelas paragens. Dentro da viagem quantas viagens.
Um encontro com seu próprio eu ela tivera. Fora lá que aprendera que não se vive do ontem, que não se vive do que já passou.
Acordar e descobrir um corpo quente, diferente e tão vivo é fascinante e assustador. Ainda mais quando se sofre por amor.

Cantarola enquanto lava os pés numa bacia no quintal. Tudo tão diferente lá. O cheiro das coisas. Até os pensamentos.
Descobrira na lagoa a sua essência.
Diziam: paciência.
E ela não tivera? A vida inteira não tivera?
Até quando esconder os sonhos embaixo do tapete? Se bem que os seus estavam enterrados sob as folhas de outono.
Ó! A brisa acaricia sua face lembrando que está chegando o inverno.
Sabe de antemão que embaixo das cobertas se enrolará feito um feto.
Que fizera de sua vida? O quê?
Mas viver do ontem? Dos ontens? E o agora?

Aquele homem estivera em todas as suas vidas. Na verdade os dois estiveram. Um esmagara seu coração.
E o outro? O outro entristeceria todas as suas vidas. Por quê? Por que Hitler ainda mora nos corações dos homens?
Um lhe ferira profundamente. Ele lhe oferecera a lua e todas as estrelas e tudo despencara como se o apocalipse acontecesse assim com tamanha naturalidade. Falsidade, falsidade.
(A felicidade depende de fatores externos? Não está dentro de nossos corações?)

O pé limpo, a alma dolorida. Lembrança de outra vida.
Tantas vidas...

...

Subir correndo os degraus, chegar à janela e olhar o homem que se afastava enviando beijos. Cresceram juntos, amaram-se desde sempre.
O que é sempre? O que é? Por que ele partira se existia amor? Por que amor sempre rimando com dor?

Olhá-lo se afastando... indo, indo. Ficar olhando e rindo (neste tempo ela desconhecia o sofrer). Desconhecia o caminho, desconhecia o destino.
Destino? E quem pode afirmar? Por que não se pode mudar? Por quê?
“Se ela acreditava que tudo é possível, que tudo pode acontecer segundo o anseio do coração”.
(Mas ele não pensava assim) Era um descrente? Apenas um homem diferente.
E era justamente esta diferença que a fascinara. O jeito que ele dizia as coisas, seu jeito de pensar. Tão diferente dela. E parte do seu ser. Cresceram juntos numa vida. Como os ramos de uma mesma árvore. Cresceram juntos...
E se distanciaram...

E o outro? O outro a adorara e protegera. Adorara? Não. Não. Tudo mentira. Ou não?
Quem pode afirmar alguma coisa?
Hitler morando naquele coração? Ou não?
Não.

...

Ela tantas vezes sentira ímpetos de pisar na cabeça do dragão. Por que o amor e o ódio podem viver tão próximos? Podem ser confundidos. Ela não pisara na cabeça do dragão? Ela também não lhe sangrara o coração? Ou não? Tudo tão confuso e tão simples. Chumbo trocado. Ter amado e odiado? Que preço se paga por tudo nesta vida. O amor e o ódio lado a lado...

E o outro? No outro tudo é perdoável. É sagrado. Faz parte de todos os tempos. Está para sempre guardado.
Na sala dos espelhos se refletindo em cada espelhinho. O tempo, o tempo... os tempos voltando... as lembranças todas trazendo tudo de volta.

Ela enxuga uma lágrima e continua a cantarolar. Na música está impregnada a história de um amor impossível. De um amor que a eternidade carrega como um estigma.
Tatuado em seu coração aquele sorriso, o olhar, e tatuado o último olhar. E as palavras todas... todas.

Nunca mais a mesma? Nunca? Nunca? Nunca?

Sabe que pode começar a dançar, dançar... pode esquecer.
Pode a cigana incorporar e esquecer, esquecer... tudo, tudo.

A cigana rodopiando, cantarolando.
É ela embaixo de um céu mudo.
Tudo mudou.
Desenterrar aquela história? Quem pode afirmar que existiu de fato? Existiu. E ele partiu.
Está sempre partindo, sempre.

(E o outro também partiu)

Por que este amor por dois homens? E os dois só sabem machucá-la, machucá-la. Um intencionalmente e o outro... Ah! O outro não se deu conta do quanto a feriu. Ou deu? Hitler? Não. Que nada! Ele é pura mansuetude.
Ele é doce, meigo. Mas covarde? Não tem atitude?
E ela é capaz de amar alguém que por covardia lhe causa sofrimento?
Esquecer, esquecer...
(a felicidade independe de fatores externos, volta a lembrar-se)

Dançar e esquecer.

Uma canivetada no peito. Um reencontro, uma flechada. Uma vida estragada? Nada. Nada.

Dançar...
...

Tudo passa. Tudo nesta vida vai passar.
E no armário das lembranças se amontoar. Se amontoar para depois recordar.

As tranças. As tranças douradas girando no rodopio. O vento, os campos de trigo e o sorriso. O menino chegando... o menino.
O beijo inocente... a estradinha sob as nogueiras. O beijo, o beijo. O coração aos pulos.
Ele nunca a deixaria?
Deixaria.

O sorriso guardado nas fotografias do baú. O sorriso guardado no coração. O sorriso. O reencontro...

Ele a reconheceria? Não. Ele não a reconheceria. Sempre um cético.
Mas a amaria.

Existe amor aí?
Talvez seja sua forma de amar.
...

Esquecer estes dois homens e aí sim começar uma nova estrada. Esquecer vidas passadas, vida passada. Esquecer e recomeçar. Caminhar, caminhar, caminhar...

Outro homem? Um terceiro? Por quê?
Este seria a resposta? Não seria uma tabua de salvação? Outra paixão? Ah, coração! Ah, coração!

Regar as flores, estender a rede, olhar os pássaros, sentir o vento. Perder-se em meio aos pensamentos. Esperar a lua. O luar que tinge o jardim, que tinge o pátio. Que amortece os sentidos. Acalmar o coração, acalmar.

Recomeçar...
Recomeçar.

SONIA DELSIN

Nenhum comentário:

Postar um comentário